terça-feira, 1 de janeiro de 2013

[Esse é Clássico!] Janela Indiscreta

★★★★☆
Ótimo

Um fotógrafo preso a uma cadeira de rodas por ter quebrado a perna durante o trabalho se distrai observando a vida de seus vizinhos. Mas tudo muda quando ele começa a suspeitar que um de seus vizinhos pode ter cometido um assassinato.

Assim como muitos diretores, Alfred Hitchcock, conhecido como "o mestre do suspense", costumava ter seus atores e atrizes preferidos, com os quais fazia vários filmes. James Stewart era um deles e, com quatro filmes, eles fizeram uma das dobradinhas mais conhecidas no cinema. Depois de ser coadjuvante em "Festim Diabólico" (Rope), em "Janela Indiscreta" Stewart protagoniza pela primeira vez um filme de Hitchcock, que tem roteiro de John Michael Hayes.

Uma das coisas que mais chama atenção no filme, é o enorme set que Hitchcock mandou construir no estúdio da Paramount. Todos os apartamentos daquele bairro tinham eletricidade e água corrente — tanto que atriz que interpreta a Srta. Torso (Georgine Darcy) "morou" no apartamento de sua personagem durante o período de filmagem, descansando durante as tomadas. Pedido megalomaníaco de Hitchcock ou não, o fato é que, na época, foi o maior set criado dentro do estúdio.


O filme começa com um "passeio" pela vizinhança, situando o espectador e apresentando o local onde a trama irá se realizar. Num dos apartamentos vive L.B. "Jeff" Jefferies, um fotógrafo que quebrou a perna num trabalho e é obrigado a ficar de molho em casa, se locomovendo apenas com o uso de uma cadeira de rodas.
A direção faz questão de mostrar que na situação de Jeff até pequenas coisas, como conseguir coçar a perna engessada, são satisfações altamente estimadas pelo personagem, e conseguidas com muito esforço. Nada é fácil naquela situação e, sem muito o que fazer, ele passa o dia espiando a vida de seus vizinhos, como se a janela fosse sua TV e cada apartamento um canal diferente — e todos, diga-se de passagem, passando programações bem chatas. Stella, a enfermeira que cuida de Jeff (e um bom escape cômico no filme), o aconselha a parar com esse hábito recém adquirido já que ele pode até ser preso e "não há janelas na prisão", ela diz. Só que ela não percebe que ele, imóvel naquele apartamento, já está na prisão. Ficar confinado num apartamento é a pior coisa que poderia acontecer para alguém que vive viajando, nunca ficando num mesmo lugar por muito tempo.


Num dia as coisas começam a ficar um pouco mais interessantes em sua rotina, quando ele começa a suspeitar que um de seus vizinhos cometeu um assassinato. Mesmo com poucas — ou nenhuma — evidência, seu faro investigativo (aliado à vontade de que algo interessante aconteça em seu dia-a-dia entediante) o leva a investigar esse suposto crime. A partir daí ele deixa de ser apenas um "espectador" passivo.

Apesar do estilo de vida simples e itinerante, Jeff namora Lisa (a linda Grace Kelly), uma rica consultora de moda com quem não tem muito em comum. Ela quer se casar com Jeff, mas, por serem de mundos muito diferentes, ele não sabe se é isso que quer. As investidas de Lisa e as incertezas de Jeff culminam em uma bela sequência em que os dois discutem a relação e seu futuro juntos.
A princípio é uma sequência normal com plano e contraplano, mas é interessante notar que a direita do plano de Lisa tem algumas peças douradas que, junto com sua roupa chique e seu cordão de pérolas, remetem ao mundo de riqueza em que ela vive, enquanto no de Jeff, não há nada que chame atenção em sua volta, apenas escuridão atrás dele. A pouca luz que chega nele vem do grande abajur também ao lado de Lisa. Esses dois detalhes revelam muita coisa sobre o relacionamento deles:
1- Reforça a diferença entre eles. O mundo de Lisa é iluminado, dourado. O de Jeff é sem brilho, escuro; 2- mostra como Jeff se sente em relação a Lisa. Diante daquele mundo brilhante, ele não tem importância, luz própria. Ele se sente menor que Lisa. E isso piora pois ela tenta fazer com que ele mude o seu estilo de trabalho, para se adequar ao mundo dela, além de estar sempre querendo atrair publicidade para ele (ao ponto de plantar notas sobre Jeff nas suas colunas);  3- E, por final, isso também mostra o que eles sentem em relação ao seu futuro juntos. Desde o início sabemos que Jeff está hesitante em relação a um futuro casamento com Lisa, em contrapartida, ela não acha que a diferença entre o modo de vida deles possa significar o fim do relacionamento. Ela ainda está otimista quanto ao futuro deles. Mas, ao fim da discussão, quando ela percebe que o relacionamento realmente pode não ter futuro, é ela quem aparece num plano mais escuro, indo embora do apartamento de Jeff. Enquanto ele, que desde o início não está certo sobre ela, fica no plano mais claro — talvez por, naquele momento, ter sentido um certo alívio.
Uma sequência linda, com pequenos detalhes que revelam bem mais que os próprios diálogos, e que só poderia ter sido realizada por uma direção de arte sensível e competentíssima.


Mais tarde, Jeff e Lisa se encontram novamente e ele conta para ela sobre suas suspeitas, mas ela a princípio não acredita, assim como o seu amigo detetive Thomas Doyle (Wendell Corey). Jeff continua com sua investigação informal, por assim dizer, e, eventualmente, consegue fazer com que Lisa suspeite que algo realmente está errado, a trazendo para o seu lado, junto com Stella. Lisa, que até o momento era apenas uma ricaça alheia ao mundo, ao se tornar um tipo de parceira de Jeff, começa a entrar no mundo dele e experimentar a adrenalina de uma investigação. No momento em que ela se arrisca para conseguir provas, Jeff percebe que a subestimou e, quando ela volta, tendo êxito, vemos um certo orgulho, aceitação no olhar dele.
Essa mudança de Lisa é refletida até no seu modo de vestir. As roupas vão ficando menos "espalhafatosas", mais sóbrias a medida que o personagem começa a participar daquele mundo.

A fotografia, que insiste em passear, principalmente com panorâmicas, pelas janelas dos apartamentos — mas sempre a partir do ponto de vista do apartamento de Jeff nunca nos deixando esquecer onde estamos  — consegue fazer até o menos "bisbilhoteiro" dos espectadores se interessar pelos vizinhos de Jeff. Há um momento durante essas viagens que, só de a câmera passar por uma janela, você percebe que já sabe quem mora ali. A partir daí, você já está envolvido emocionalmente com essas pessoas, seja Srta. Lonelyhearts ou o casal que tem o curioso hábito de dormir na varanda de casa, por exemplo.


Usando a metáfora de alguém espiando seus vizinhos, Hitchcock faz uma crítica a sociedade americana, voyeurista, exibicionista e que cada vez mais ficava "imóvel" diante da tecnologia (como a própria televisão metafórica) e seus efeitos na vida diária. Essa crítica continua valendo — mais do que nunca. Se hoje temos programas, sites e revistas de fofoca é porque há procura. O ser humano sempre teve interesse pela vida alheia. A grama do vizinho sempre foi mais verde. E, se não bastasse isso, cada vez mais nós temos necessidade da exposição. A cada geração temos nos tornado a bailarina Miss Torso, que adora se exibir, dançando com pouquíssima roupa aos olhos de quem quiser ver. Se hoje temos o "stalking" na internet é porque as pessoas oferecem conteúdo para ser "stalkeado". O interesse pela vida alheia sempre existiu mas, com o passar dos anos, a necessidade de nos mostrar parece ter aumentado, principalmente com a internet e com as redes sociais disponíveis na palma da mão. Saímos e ficamos olhando para a tela de um celular, chegamos a um lugar e tiramos foto. Viramos reféns da tecnologia e do exibicionismo, exatamente como Hitchcock previu há quase 60 anos.

Por isso que Janela Indiscreta é um do pouco filmes que sobreviveram tão bem ao tempo. Não apenas por ser um ótimo suspense, mas por trazer questões que ainda valem ser discutidas hoje em dia.

Rear Window
EUA , 1954 - 112 min.  

Suspense
Direção: Alfred Hitchcock

Roteiro: John Michael Hayes
Elenco: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter, Raymond Burr, Judith Evelyn, Georgine Darcy

5 comentários:

  1. "Por isso que Janela Indiscreta é um do pouco filmes que sobreviveram tão bem ao tempo. Não apenas por ser um ótimo suspense, mas por trazer questões que ainda valem ser discutidas hoje em dia."

    Verdade. Gostei muito do filme e olha que não tava dando nada por ele por causa da sinopse e tal. Mas vi que era um clássico e decidi assistir. O engraçado é que não é cansativo!

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    1. Pois é, olhando só pela sinopse, dá pra pensar "pô, deve ser um filme meio cansativo". Mas não é. Hitchcock sabe como criar um clima interessante. E o roteiro ajuda, com bastante diálogos legais e interações entre os personagens.
      E tem sempre o ótimo James Stewart, um dos meus atores preferidos.

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  2. Acho que esta é a sua crítica mais técnica, não?
    Prestarei atenção a estes detalhes quando assistir ao filme.

    Crítica ao voyeurismo não há, penso eu; há a constatação de que as pessoas se interessam pela vida alheia. Truffaut, inclusive, na entrevista ao Hitchcock, chega a levantar a ideia de que todo espectador seria um voyeur.

    Rodrigo

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    1. É efeito do curso do Pablo Villaça. Hehehe

      Só lembrando que quando eu falo voyerismo, não é no sentido sexual. E sim no sentido do indíviduo se interessar, além do normal, pela vida alheia.

      Bem, foi a minha percepção do filme. Não quer dizer que é a certa. O legal do cinema é esse... Pode significar coisas diferentes para cada pessoa (assim como letras de músicas, ou qualquer outra forma de arte).

      O Pablo falou dessa entrevista. Ainda não vi!

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  3. Procurando imagens para o post, me deparei com esse texto bem interessante do Tony Dayoub:

    http://www.cinemaviewfinder.com/2012/05/for-love-of-film-iii-rear-window-1954.html

    De acordo com esse texto, cada vizinho de Jeff simboliza seu estado de espírito, e seus medos em relação ao casamento com Lisa.
    Gostaria de ter tido esses insights enquanto escrevia a crítica.

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